O brasileiro ainda doa pouco, se comparado a cidadãos de outros países, mas as periferias se unem e inovam para sobreviver a situações adversas

 

Por Wagner da Silva (Guiné)

O Brasil assistiu a uma forte mobilização e sensibilização da sociedade em relação à pandemia de coronavírus no país no primeiro semestre de 2020.

Mas os últimos seis meses daquele ano mostraram uma desaceleração das doações, principalmente das campanhas de vulto fomentadas por grandes empresas. Já nas periferias, os moradores não deixaram de se movimentar para conseguir e distribuir donativos.

A flutuação nas doações demonstra a necessidade de se fortalecer a cultura de doação no país. O Brasil é o 74ª entre os 126 países analisados na pesquisa de 2019 da CAF – Charities Aid Foundation (Fundação de Auxílio às Instituições de Caridade, em tradução livre) sobre filantropia, o que significa que o país ainda tem muito a melhorar nesse quesito.

Apesar disso, uma parcela de brasileiros tem dado provas de sua empatia e solidariedade: uma pesquisa do IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social), lançada em 2017, logo após o agravamento da crise econômica de 2016, já mostrava que os brasileiros pobres doaram duas vezes mais que a população com maior renda.

O dado do IDIS não causa nenhuma surpresa para quem é da periferia porque, para o morador dessas regiões, dividir a escassez é uma estratégia de sobrevivência que surge da vulnerabilidade social e das consequências da desigualdade do sistema excludente, então, é natural que existam iniciativas de solidariedade assim.

Os líderes comunitários são agentes de articulação de projetos que buscam ajudar os moradores locais de acordo com suas necessidades — desde arrecadação de donativos como roupas e alimentos até a construção de forno a lenha, algo inimaginável nos grandes centros urbanos até pouco tempo atrás.

Na pandemia, esses líderes sobressaíram em várias ações ligadas a organizações como CUFA (Central Única das Favelas), Coalizão Negra Por Direitos, G10 Favelas, entre muitas outras espalhadas pelo país.

Outras iniciativas como o Matchfunding Enfrente, por exemplo, são essenciais para dar visibilidade às ações dos moradores de territórios vulnerabilizados.

Ele consiste em uma plataforma de financiamento coletivo liderada pela Fundação Tide Setubal, que divulga centenas de projetos das periferias brasileiras, facilita o ritmo de doações, de pessoas físicas e jurídicas, e possibilita que os recursos sejam alocados exatamente onde farão a diferença.

Em apenas três meses e meio em 2020, conseguiu 13.378 doações, efetuadas em sua maioria por mulheres (69%), sendo 11,8 mil delas entre R$ 10 e R$ 299 e, dentre essas, cerca de 5 mil de R$ 10 a R$ 49, o que revelou centenas de pequenos apoios.

Essa visibilidade para as soluções que surgem das próprias periferias pode inspirar a construção de políticas públicas no país, as quais apresentam um potencial ganho de escala, beneficiando muito mais pessoas.

Com o agravamento da Covid-19, a população vulnerabilizada não deixou de passar fome. Pelo contrário. O país presenciou a situação se agravando no início de 2021 — em especial pela suspenção do auxílio emergencial federal.

Ou seja, mesmo com iniciativas de solidariedade nas e para as periferias, houve um aumento do número de pessoas em situação de vulnerabilidade. O crescimento da cultura de doação, nesse caso, poderia ser um antídoto para ajudar a melhorar essa situação.

Entretanto, um grande obstáculo que a cultura de doação ainda enfrenta no Brasil é a falta de diálogo com o atual poder executivo federal, que vem fomentando uma constante criminalização das organizações da sociedade civil e desse modo acaba contribuindo para que a população em geral desconfie de ações filantrópicas da sociedade civil por não saberem o porquê da arrecadação, quem está por trás e qual o seu destino exato.

Ou seja, muitas pessoas só ouvem falar ou apenas confiam em grandes campanhas, realizadas por instituições de porte. E, se estas param de arrecadar, esse público também para de doar.

Assim, mesmo com o crescimento expressivo do campo da filantropia com institutos, fundações e empresas, ainda faltam ações estatais para regularizar e aumentar essas atividades — como é o caso do fomento de leis de incentivo, prática já bem sedimentada nos Estados Unidos.

Outro agravante é a falta de visibilidade que as iniciativas periféricas enfrentam. Elas têm um grande impacto local e funcionam no estilo “da periferia para a periferia”, mas as lideranças comunitárias, muitas vezes, não conseguem “furar a bolha” e levar suas causas e campanhas para além do seu território de origem ou para outras pessoas de outros extratos sociais que estariam dispostas a contribuir.

Do ponto de vista dos institutos, fundações e empresas, o Censo GIFE 2018 apontou que, historicamente, a filantropia e o investimento social privado brasileiros concentram-se majoritariamente na execução de projetos próprios.

Mas o padrão histórico de atuação vem mudando em direção a um investimento social mais doador. Ainda segundo este estudo, organizações que doaram recursos financeiros para terceiros passaram de 21% em 2016 (595 milhões de reais) para 35% em 2018 (1,1 bilhão de reais).

Entretanto, este movimento pode ser ainda maior, como se viu em 2020 num movimento de solidariedade que surgiu para o enfrentamento dos impactos negativos da pandemia, que, segundo os dados do Monitor das Doações Covid-19, criado pela ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos), ultrapassou mais de 6 bilhões de reais, um recorde na história de doações para emergências no país.

A cultura da doação no Brasil tem avançado, mas ainda caminha a passos lentos, e a mudança só acontecerá se a sociedade se engajar nessa causa. E o que fazer para ajudar, no âmbito individual?

O primeiro passo é olhar à sua volta, conhecer o seu redor e saber o que há no seu território, pois o doador não precisa ir muito longe para fazer uma boa ação. No próprio bairro, é possível pesquisar e se conectar a iniciativas com as quais se identifique.

Em outras palavras, é perguntar-se: “o que acontece à minha volta?” e ser um exemplo, é falar sobre doações para familiares e conhecidos e levar essa mensagem, inspirando outras pessoas ao máximo.

Juntos, indivíduos, organizações da sociedade civil e empresas podem pressionar governantes e, ao mesmo tempo, corresponsabilizarem-se e elevarem suas doações para alcançar mais periferias, no médio e longo prazos, e não apenas nos momentos mais agudos e emergenciais como o da Covid-19.

*

Sobre o autor: Wagner da Silva (Guiné) é cientista social formado pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), com especialização em Gestão de Projetos no Território pelo Centro Universitário Senac. Atualmente, cursa MBA em Gestão de Projetos pela ESALQ/USP. Possui experiência na gestão e realização de programas e projetos sociais em periferias urbanas. Fruto das periferias e da escola pública, atualmente é coordenador de apoio e fomento a agentes e causas na Fundação Tide Setúbal.